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Angu-de-caroço em Angola

Por Robson Ramos

Alguns adágios populares são verdadeiros clássicos e seguem intocáveis. Outros, porém, há muito tempo perderam sua força. É o caso daquele que diz: “política, futebol e religião não se discutem”. A política já virou feijão-com-arroz, com temperos novos e apimentados. Depois do fatídico 7 a 1 o futebol perdeu o seu encanto, especialmente quando o assunto é seleção brasileira. Religião então, “nem fale”. Está nas manchetes policiais do país e do mundo.

O incidente sendo protagonizado em Angola por pastores da IURD – Igreja Universal do Reino de Deus – há meses sendo noticiado – está longe de chegar ao fim. O enredo – dinheiro, sexo e poder – tornou-se lugar comum.

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“Os religiosos angolanos declararam ruptura com a gestão brasileira. É um movimento sem precedentes, que começou em novembro de 2019, com a divulgação de um manifesto com críticas à direção da igreja no Brasil.” (1)

Falando em nome do grupo dissidente, o pastor da IURD Dinis Bundo relatou situações denunciando benesses e privilégios concedidos aos pastores brasileiros, relatando que as melhores igrejas sempre eram oferecidas aos pastores brasileiros que também recebiam bons salários e carros modernos. (2)

Dentre outras coisas a IURD está sendo acusada de evasão de divisas, racismo, obrigação de vasectomia por pastores daquele país. Praticamente a metade dos pastores angolanos se tornou dissidente dessa denominação e se apossou dos templos que estavam sob o controle dos brasileiros. Detalhes disso tudo podem ser lidos nas muitas matérias disponíveis na internet, por isso não preciso repeti-los aqui.

Entretanto, há pelo menos um aspecto que está deixando de ser observado pelos analistas e sendo evitado por aqueles que fazem vista grossa. Refiro-me às armadilhas relacionadas com o processo de transnacionalização de organizações religiosas e organizações afins.

Digno de nota nesse contexto é o caso também recente envolvendo pastores brasileiros – sem qualquer ligação com a IURD – presos em Portugal, no início deste ano, acusados de “auxílio à imigração ilegal e tráfico de pessoas.” (3) Autoridades policiais encontraram aproximadamente 30 estrangeiros, alojados pelos pastores nos locais onde os cultos eram realizados, em condições precárias. Os brasileiros tinham que pagar um aluguel em torno de 300 euros para viver nos locais onde eram colocados, além de contribuir com 10% da sua renda mensal para a igreja (4)

À medida em que aumentam as atividades de instituições religiosas transnacionais, brasileiras e estrangeiras, arrecadando dinheiro de fiéis incautos e sabe-se lá de que outras fontes movimentando divisas de um país para outro, elas se tornam, potencialmente, vetores de práticas espúrias (lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito, dentre outras coisas) por parte de líderes inescrupulosos agindo num ambiente caracterizado por extrema informalidade e ingenuidade, favorecendo a infiltração de pessoas com interesses escusos e, por que não dizer, vínculos com o crime organizado nas suas mais variadas formas.

É no mínimo alarmante, por exemplo o testemunho do ex-diácono de uma igreja no Rio de Janeiro sobre acusações relacionadas ao uso de igrejas para lavar dinheiro de propina ligada a um integrante da elite política desse país: “O que eu vou falar todo mundo sabe: nenhum templo religioso contribui com imposto no Brasil, e este é o ponto de partida para toda a picaretagem. Viabiliza que ali se lave dinheiro do narcotráfico, de bicheiro, de político e das milícias”. (5)

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Eu mesmo fui informado recentemente por uma juíza federal sobre um cidadão de outro país que veio para o Brasil envolvido num esquema de tráfico de drogas e fundou seis igrejas. Todas elas passaram a ser usadas para lavar dinheiro do narcotráfico. Isso estava acontecendo numa grande cidade do país.

Ainda que se trate de situações distintas existem algumas conexões entre esses casos. De um lado, vemos o enfraquecimento – para não dizer a morte da fé – que tais incidentes provocam, trazendo efeitos emocionais e psicológicos para aqueles que perdem a confiança não apenas nas instituições mas também nas lideranças que usam o nome de Cristo. Consequentemente ficam sem um referencial espiritual confiável, ao mesmo tempo em que a banalização do Sagrado faz com que a experiência espiritual se transforme num item de barganha, segundo a lógica da teologia da prosperidade, condicionando a benção de Deus ao quanto você contribui na igreja.

Por outro lado, os contornos desse fenômeno, no que diz respeito à transnacionalização de organizações religiosas, sobretudo envolvendo igrejas, no Brasil e no Exterior, merecem ser estudados com maior profundidade.

É bem verdade que a Fé Cristã avançou rapidamente por todo o império romano e pelo mundo conhecido de então desde o primeiro século. Não há nada de errado com a transnacionalização em si mesma, que é o “processo pelo qual algo ultrapassa as fronteiras nacionais, englobando mais do que um país.” O mesmo acontece em todas as áreas e atividades, seja na importação e exportação de bens, nas artes, no esporte, nas disputas ideológicas e certamente na prática de ilícitos.

Não são poucos os grupos, que usando o nome de Deus, seguem na contramão do que é recomendado mundo afora a respeito das boas práticas administrativas, que são os Programas de Integridade, também conhecidos como Compliance, e o combate à corrupção. O que se constata na prática é que ambientes e estruturas eclesiásticas facilitam a ocorrência de condutas delituosas, causando danos a pessoas incautas e contra a administração pública.

Isso é absolutamente paradoxal, uma vez que nas Escrituras Sagradas há exemplos que ensinam exatamente a importância de se “fazer a coisa certa, do jeito certo e com a motivação certa”.

O relato da experiência de José, governador do Egito, descrito no livro de Gênesis, apresenta-nos um exemplo magnífico de Programa de Integridade – pauta essencial atualmente no mundo corporativo, seja público ou privado.

Uma análise do texto bíblico nos mostra José como um líder com visão sistêmica do momento em que vivia, o que lhe permitiu pensar em ações estratégicas, definir planos com metas, envolvendo sua comunidade na administração dos bens e patrimônio, insumos, comodities que Deus colocou sob seus cuidados.

Certamente ele devia ter uma equipe que seguia à risca tudo o que devia ser feito para que alcançassem os resultados almejados. José exercitou o princípio da Mordomia com muita competência, responsabilidade e transparência perante o Faraó. A implementação dos planos pedia integridade e transparência. José esteve envolvido em todas as etapas de seu plano de provisão para o Egito e teve o cuidado de supervisionar seus encarregados, ao mesmo tempo em que delegava a pessoas integras.

Integridade e transparência foram fundamentais para conquistar a confiança do Faraó, o que resultou na preservação da vida dele e de sua família, permitindo que por vários séculos vivessem bem no Egito.

Outro exemplo, dentro do mesmo tema: integridade, no entanto com final trágico na vida do povo de Deus relatado no livro de I Samuel, também no Antigo Testamento, é a história do Sumo Sacerdote Eli e seus filhos, os quais usavam indevidamente as ofertas do templo para seus próprios interesses.

Como consequência a descendência de seu pai perdeu o direito ao sacerdócio e em seu lugar foi escolhido o profeta Samuel. Nos dias atuais, seja em grandes centros ou pequenas cidades do interior o que mais se vê é a clonagem endêmica dos filhos de Eli. Felizmente ainda existem alguns poucos modelos de comunidade cristã que seguem o padrão de José do Egito.

Aqueles que se apresentam como pastores do rebanho deveriam ser modelo nessas questões, mas, no entanto, reproduzem as mesmas práticas reprováveis de um Estado corrupto e esbanjador. Vemos, dentre outras coisas, a proliferação de igrejas nas quais o patrimônio da igreja (seja o terreno, templo ou conta bancária) se confunde com o patrimônio do seu líder, que, não raramente, atua de maneira autocrática em sua forma de liderar, supostamente legitimado por um discurso espiritual que serve de camuflagem para práticas reprováveis.

Quando comparamos a experiência de José e a dos filhos de Eli, verificamos, dentre outras coisas, que José atuou com integridade e transparência, trabalhando de forma estratégica com a visão que Deus havia lhe dado e, como resultado, o povo foi beneficiado com uma sociedade mais igualitária e justa.

Um Programa de Integridade é um conjunto de disciplinas e procedimentos que promovem o cumprimento das normas legais no contexto das atividades de uma organização. Além de ser uma ferramenta administrativa eficaz na prevenção, detecção e enfrentamento de desvios que possam ocorrer. Enquanto que em um ambiente informal e desprovido de medidas de controle, debaixo de uma liderança centralizadora e autoritária, que não submete suas decisões a ninguém, as fraudes podem ser facilmente acobertadas.

Mesmo não sendo ainda um tema presente no contexto das igrejas os Programas de Integridade e tudo que deles decorrem no ambiente corporativo, nos dias atuais, têm uma ligação muito estreita com o princípio da mordomia, do qual se depreende o conceito do “mandato cultural”, ensinado em várias partes das Escrituras, em especial no livro de Gênesis 2.15: “O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”. Essa responsabilidade perante o Criador faz parte da essência do ser humano, que recebeu uma tarefa de exercer domínio sobre os peixes do mar, sobre a terra, ser fecundo e multiplicar-se (Genesis 1.26-28). A partir de uma visão cristã da vida num sentido amplo entende-se isso como um privilégio: a responsabilidade de desenvolver uma cultura – em todas as suas dimensões – que reflita os atributos redentores de Deus em todas as esferas da existência humana.

Aqueles que se apresentam como pastores do rebanho e que falam em nome de Deus, deveriam ser modelo nessas questões, mas, lamentavelmente, muitos deles reproduzem as mesmas práticas reprováveis de governantes e políticos corruptos.

Se as igrejas desejam impactar a sociedade com as Boas Novas do Evangelho, elas mesmas devem ser protagonistas de uma cultura ética.

Quase não se ouve um líder religioso falar sobre a implementação de um Programa de Integridade em sua igreja ou entidade por ele dirigida. Em contrapartida encontramos nas Escrituras diversas mensagens que apontam para o padrão que deve caracterizar a vida daqueles que seguem a Cristo, que disse:

“Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus” (Mateus 5:16)

Pois bem, como resolver a situação em Angola?

O caminho mais indicado para as autoridades brasileiras e angolanas é a utilização do instituto da Arbitragem (7). É preciso sanear o ambiente, encontrar uma solução negociada e promover a restauração entre as partes. Uma vez que se trata de uma disputa entre pastores, é de se esperar que se submetam a Cristo e, no mínimo, demonstrem boa vontade concordando com essa forma de resolução de conflitos. Colocar panos quentes e tapar o sol com a peneira não irá resolver. Brigar na Justiça será um espetáculo ainda mais deplorável. O angu-de-caroço já está feito.

Que sirva de lição. Nada disso estaria ocorrendo se tivessem seguido um bom Programa de Integridade.


Notas de rodapé:

https://waa.ai/ep36
https://waa.ai/ep3i
https://waa.ai/ep3D
https://waa.ai/ep3d
https://waa.ai/ep3M

Arbitragem: uma alternativa para a solução de conflitos, que além de contribuir para a desobstrução do Judiciário, pode estabelecer uma relação de parceria capaz de conferir efetividade e distribuir justiça às partes. (https://waa.ai/ep31)

Robson Ramos é advogado e consultor em Implantação de Programas de Integridade e Compliance. Atuou por mais de 20 anos em multinacionais americanas, nas áreas de gestão de pessoas e desenvolvimento estratégico. Membro da Academia de Letras de BC, autor de três livros e vários artigos para portais online, incluindo o Jornal Página3.

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