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Balneário Camboriú
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O paradoxo que nos condena

Você já se viu sozinho e largado num lugar onde todos olham para você como que perguntando – Quem é você? O que você está fazendo aqui? Pois bem, vivenciei isso não faz muito tempo.

Meu batismo nesse “mundo-de-meu-Deus” não tardou a acontecer. Embora estivesse consciente de que não se tratava de um Shangri-lá, admito que minhas expectativas eram outras.  Nessas novas terras dava assessoria jurídica a pessoas de uma comunidade indígena.

Não demorou muito e logo fui surpreendido por uma movimentação diferente. Almoçava no único restaurante da cidade e notei um burburinho tomando conta do ambiente. As pessoas foram se levantando das suas mesas e saindo rapidamente, ao serem informadas do que estava acontecendo.

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Dois colonos – diga-se, brancos e de ascendência europeia – estavam sendo mantidos em cárcere privado por um grupo de indígenas. Um velho e recorrente problema de disputa de terra nessa região. Em poucas horas era possível sentir o clima tenso na cidade de pouco mais de cinco mil habitantes. Como forma de marcar território e forçar uma atuação mais eficiente das autoridades competentes, os colonos bloquearam o único acesso à cidade com tratores e toras de madeira.

Logo descobri que há muita coisa por trás de incidentes como aquele. Os indígenas alegam que foram explorados e enganados, o que não é novidade para ninguém.

Basta dar atenção a eles, conversar sem pressa, ouvi-los, ganhar sua confiança e logo é possível entender o que aconteceu e ver com maior profundidade a ferida que continua aberta: um histórico de exploração que ninguém nega ter havido, mas no qual ninguém ousa mexer, ainda que haja farta documentação de caráter jornalístico assim como estudos acadêmicos. Não faltam registros sobre a chegada dos imigrantes e sua dedicação ao trabalho para conseguir se instalar na região e sobre as condições em que o processo de instalação dos imigrantes se deu e os fatos que levaram os indígenas da região a ficarem na condição deplorável em que se encontram. Não se trata meramente de choque de culturas, embora muitos usem esse argumento como uma cortina de fumaça, dando a entender que o problema reside na cultura indígena.

Eu estava em frente à prefeitura e era o único advogado no meio da turba que aguardava pela libertação dos amigos. Mais tarde compreendi porque os poucos advogados da região fogem desse tipo de encrenca. Mais um dia sem uma resolução do problema poderia gerar um conflito de proporções trágicas. Os ânimos já estavam mais do que acirrados e, alguns, mais impacientes incitavam os outros a invadir o cativeiro e libertar os amigos, ainda que tivessem que matar uma dezena de indígenas. Era o que eu estava ouvindo no meio daquela confusão. Após alguns dias de muita tensão os colonos foram libertados.

Aos poucos fui me dando conta da complexidade da situação. Além de alarmantes os casos eram emblemáticos.

Jerônimo – nome fictício – indígena, veio ao meu encontro com a família toda, esposa e uma penca de filhos. Foi logo tirando de um saco plástico vários documentos referentes às cobranças de impostos e taxas de todo tipo relativos a uma empresa que alguém havia aberto em seu nome.

Morava no meio do nada, longe de tudo e estava impossibilitado de trabalhar por causa de uma cirurgia malsucedida para colocação de uma prótese no ombro. Tempos depois a prótese foi removida e ele ficou sem um osso que faz a ligação do ombro com a caixa torácica. Os funcionários do INSS diziam que um novo procedimento cirúrgico dependia de um laudo pericial, porém nunca se davam ao trabalho de agendar a tal perícia. Ao mesmo tempo o pedido de prorrogação do benefício por incapacidade tinha sido indeferido. Não bastasse tudo isso a madeireira na qual ele trabalhava ameaçava o pobre coitado de demissão por abandono de emprego. 

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Como ajudar alguém num emaranhado desses? Aliás, muitos deles têm problemas semelhantes, que vão surgindo e se avolumando sem que sejam resolvidos.

Lembro-me de outra pessoa, também da Reserva. Desempregado, 57 anos e com sete filhos. Há cerca de dez anos ele havia sido indiciado e condenado por furto. Além da prestação pecuniária ele teria que cumprir um certo número de horas de serviço comunitário. Fez menos de 1/3 das horas e parou. Nada fez tampouco em relação à prestação pecuniária. Quase uma década depois foi intimado a pagar um valor que passava dos R$ 5.000,00 (cinco mil reais), correspondente ao valor reajustado da pena, além de ter de retomar o cumprimento das horas que faltavam de serviço comunitário, que não eram poucas.

Tudo por causa de um incidente que ocorrera havia 10 anos, envolvendo um grupo de indígenas que teria depenado a caminhonete de uma empresa que estava construindo uma barragem dentro da Reserva. Levaram tudo, pneus, motor, bateria, bancos e o que mais podia ser arrancado. Havia muitos trabalhadores brancos, trabalhando no local. Alguns deles pernoitavam nas instalações e outros iam e voltavam diariamente, transportados por veículos da empresa.

Atritos envolvendo funcionários trabalhando na barragem e indígenas pipocavam a todo instante. Fontes confiáveis me disseram que, naquela época, mães indígenas – em troca de alguns trocados – entregavam suas filhas, crianças ainda, para funcionários da tal empresa para que fossem abusadas sexualmente.

O dano material, causado pelo ato de vandalismo perpetrado por um grupo de indígenas contra a caminhonete da empresa contratada para trabalhar no local, era insignificante diante dos crimes, dos danos morais e psicológicos causados por aqueles que se aproveitaram da vulnerabilidade daquelas famílias.

O ataque contra o veículo foi motivado pelo sentimento de indignação, impotência e descaso das autoridades, diante dos absurdos a que estavam sendo submetidos. No entanto, para aqueles que conduziram o processo judicial só importava o dano material a uma caminhonete. As outras questões, muito mais graves, passavam despercebidas pelas autoridades, com a omissão dos gestores dos municípios vizinhos e pela comunidade.

Durante a audiência percebi que a magistrada não parecia disposta a ouvir o que me propus a falar em defesa do meu cliente. Enquanto me manifestava ela folheava o processo, com uma postura que me pareceu impermeável e meramente técnica. Na sequência ela disse que estava fazendo seu papel. Meu cliente tinha que pagar o que devia à Justiça e fim de papo.

Essas pessoas vivem cobertas pela poeira e preconceito da parte daqueles que vivem próximos e que sabem por que e, em que condições os indígenas foram empurrados para viver naquele barranco entrecortado por estradas sinuosas que não levam a lugar nenhum, a não ser à sensação de que estão abandonados e deixados à própria sorte, num processo de aniquilação silenciosa e desumana, causada pela indiferença e omissão de todos que fecham os olhos para tudo aquilo.

Não é possível deixar de ter um olhar especial para com as crianças. Elas crescem sem a atenção e cuidado que toda criança merece e precisa ter.  Desde cedo estão expostas a todo tipo de problema: promiscuidade, drogas, alcoolismo, gravidez precoce e por aí vai. Não há praças ou áreas de lazer. Elas brincam na terra batida com qualquer coisa que chamam de brinquedo, na companhia de galinha, porco e outros animais. Ainda que haja uma ou outra unidade escolar dentro da Reserva o índice de aproveitamento por parte das crianças, em virtude das condições em que vivem, deve apresentar um déficit de aprendizagem que vai se acumulando.

Engana-se o leitor se pensa que estou descrevendo uma situação vivida no interior da Amazônia, a milhares de quilômetros dos grandes centros. Por mais paradoxal que possa ser, essa Reserva Indígena está localizada no Vale Europeu, aqui mesmo em Santa Catarina, ao lado de cidades prósperas e conhecidas pela gastronomia, com parques industriais bem instalados, com centros universitários modernos, com professores e alunos envolvidos com projetos de tecnologia de ponta, conversando abstratamente sobre desenvolvimento sustentável, sobre avanços tecnológicos, sobre a dignidade da pessoa humana, a justiça e a equidade.

Na prática, entretanto, ninguém olha para o sofrimento do outro e muito menos para essa comunidade de quase quatro mil pessoas vivendo ao lado. Adultos, idosos e crianças, gente como a gente, condenadas à indiferença, ao ostracismo e a uma existência sem perspectiva.

O que fazer para que o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha a eficácia que se espera? A Lei nº 8.069/1990 em seu artigo 3º, diz:

“A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.”

A quem compete assegurar às crianças que vivem nesta e em outras comunidades indígenas tais direitos fundamentais e fazer valer, concretamente, o que o ECA e a Constituição Federal de 1988 dizem estar assegurando? Se as instâncias competentes não estão fazendo sua parte a quem compete chamar atenção sobre essa omissão? Qual a responsabilidade da sociedade civil e do cidadão comum nesse sentido?

Um dos paradigmas a serem quebrados é a ideia subjacente na mentalidade dos brancos que residem nas adjacências da Reserva, de que não é possível haver uma convivência harmoniosa e que os dois lados estão acorrentados a um antagonismo sem fim.

Se você fala sobre isso com um empresário, um político, um líder religioso – e há muitos deles, diga-se de passagem, ou um colono, a reação é marcada por respostas evasivas e de puro desinteresse. É como se o dever de humanidade não se aplicasse ao indígena.

Como é possível sermos protagonistas de tamanha insensibilidade e virarmos as costas a pessoas vivendo em condições mais do que degradantes, bem próximos das nossas casas, dos nossos centros universitários, dos nossos shoppings, das nossas casas climatizadas e igrejas com gente bem arrumada e cheirosa buscando bênçãos celestiais?

Por que é tão difícil para as autoridades, para os educadores, para antropólogos, historiadores e líderes religiosos, que inclusive têm congregações dentro da Reserva, reunirem-se para debater o assunto e buscar soluções efetivas quanto aos rumos e destino dessa gente?

Não faltam justificativas para não se fazer nada ou simplesmente dizer que a situação dos indígenas é de responsabilidade da FUNAI e do Governo Federal. Mas quando o assunto é retirar madeira da Reserva e explorar predatoriamente aquela comunidade não existe tempo ruim.

Os opostos e disparidades entre as cidades prósperas, urbanizadas, modernas e as condições de vida dessas pessoas na Reserva são moralmente inaceitáveis e deveriam causar indignação a qualquer pessoa. Como se a prosperidade alcançada pelas gerações atuais não tivesse nada a ver com as atrocidades históricas cometidas contra a população indígena na região.

Moradores da região e autoridades simplesmente fazem cara de paisagem quando informados sobre o fato de que, por volta de 1900, havia uma política de extermínio de índios em Santa Catarina chancelada pelo governo estadual, como forma de dar suporte à instalação de imigrantes europeus na região (1).

Que perspectiva essas crianças da Reserva podem ter? O que significa no mundo real de desigualdade e indiferença no qual vivemos, dizer para essas crianças que o ECA e a Constituição Federal “garantem todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, e que lhes assegura, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”? Ou será mera ficção e um jogo de faz de conta por parte daqueles que tem a responsabilidade institucional e moral de trabalhar para amenizar o sofrimento daquelas pessoas, mas que nada fazem?

Numa conversa com o pastor de uma igreja da região, por onde famílias indígenas costumam circular, perguntei-lhe se a igreja sob sua responsabilidade tem alguma atividade voltada para aquelas pessoas.  Ele então fez um relato sobre algo que sua igreja fez – como se tivesse sido grande coisa – mas que para mim soou como uma tentativa de justificar o fato da sua comunidade nada estar fazendo a respeito. Ele disse que algumas pessoas da igreja começaram a dar aulas de violino para as crianças indígenas, mas que encerraram as atividades depois que os pais das crianças venderam os violinos para suprir outras necessidades das famílias.

Fiquei perplexo ao ouvir aquilo e lhe perguntei se, conhecendo as condições de vida dos indígenas, dar aula de violino para aquelas crianças – com limitadas condições cognitivas, de educação e de higiene – teria sido a estratégia mais adequada para iniciar uma aproximação com aquela comunidade.  Diante da pergunta feita ele preferiu dizer “boa noite” e encerrar a conversa.

É assim que fazemos quando queremos fugir do paradoxo que nos condena.


Nota

(1)

https://bit.ly/34Z4XAl

https://bit.ly/2KxsTBa


Robson Ramos é advogado e consultor em Implantação de Programas de Integridade e Compliance. Atuou por mais de 20 anos em multinacionais americanas, nas áreas de gestão de pessoas e desenvolvimento estratégico. Foi presidente do Conselho Municipal do Idoso em nossa cidade, de 2009 a 2011. É membro da Academia de Letras de Balneário Camboriú e sua mais recente obra é: O Idoso do Plaza: crônicas para saber envelhecer (Publit Soluções Editoriais). 
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