Tava na cidade, toda atrapalhada, toda em dúvidas. Nitidamente um sintoma da síndrome da roça, umas quinze opções de não-sei-se-faço e a predominante vontade de voltar pra casa e assar um pão antes do dia se ir.
O lado caxias querendo cumprir o que se propôs, que até agora se resumiu a visitar a amiga…pra que mercado, pra que banco, pra que lista de itens… Isso tudo só embaralhando mais a cabeça. Vamos praticar, esse era o topo da lista. Disciplina, disciplina Caroline… mas... será mesmo que é o que preciso hoje? Tô com fome. Tô fora de casa há horas. Quero sair da cidade. E o bebê? Vamos praticar, decisão tomada pela segunda vez. Tem o trânsito, tem entrar na rua errada, tem mais confusão.
Atrasada uns vinte minutos, rondei a porta, cogitei, desisti quando escutei todo o silêncio e a concentração de um grupo que saiu de casa pra isso. Tá tudo certo, cestlavie, plantio e colheita, você nem sabia se ia casar ou andar de bicicleta, toma uma água, senta um pouco, volta a si e vai embora.
Lá estou dando o tempo quando vejo Maria, no auge de sua meia dúzia de anos, toda trabalhada na sapequice, me dando aquela analisada onde tava escrito “e aí perdida?” (eu rio)
- Maria! Você tá aí é? Quanto tempo menina! (tentando evitar o bordão “você cresceu” com o apertão nas bochechas, mas consciente que sim, a gente fica igual às tias).
- Oi. Mas quem é você mesmo?
(Por um instante lamento a ausência e queria fazer mais parte; no instante seguinte comemoro e vejo que faço totalmente parte. Quem quer que ela me reconheça é meu ego, mas meu coração tá aqui, em total presença com ela e com sua verdade, o que é mais lindo. Quanto tempo tem num instante?)
- Eu sou aquela tia que tem vários filhos, uma é bebê, você se lembra? Eu sou amiga da mamãe, que te conhece desde que você tava dentro da barriga.
- Ãããhn tá. (vulgo “grandes coisa”).
Saiu andando.
Continuei o assunto corriqueiro de halls de entrada. Me cansei, dei uma volta, caí na sala de Maria, com uma casinha muito bem montada, um filtro dos sonhos gigante e um tapete azul esticado no chão. Deus, o yoga que eu precisava, toda a inocência e a pureza do mundo, um espaço vazio, menos gente, menos outros, e uma facilitadora mestra e despida de qualquer tem-que-ser.
- Ah, com licença Maria, eu posso ocupar esse espaço um pouquinho?
- Ah claro, você veio fazer yoga?
- Sim, eu vim.
- Ah, pode fazer sim. Você quer uma ajuda? Olha, faz essa postura aqui do macaco.
- Ah, ok, faço sim.
- Ahãm, você parece uma macaca MESMO. Agora faz essa aqui, da árvore. (...) E agora essa aqui, como é mesmo o nome? Ai, como é mesmo… (saiu da sala, deu uma volta)… A postura da mamãe! A mamãe adora essa postura, ela sempre faz, vamos chamar de postura da mamãe.
- Hm, eu também gosto dessa, eu gosto muito (comemorando internamente a perfeita definição para natarajásana, a postura de Shiva como dançarino cósmico - dança, equilíbrio, quatro braços, tudo a ver com mamães!).
E ela continuou guiando: - Vamos fazer juntas… Coloca a mão aqui ó, isso, muito bem, você também sabe essa. Vamos mostrar pra mamãe quando ela sair da sala.
Já estou totalmente satisfeita e agradecida pelo atraso, pelas dúvidas e por voltar a mim dessa forma, mas ela ainda tem mais a oferecer:
- Vamos tirar uma cartinha. (não era uma pergunta, era uma afirmação). Ela embaralha o tarô, retira uma pra si, ABUNDÂNCIA, e me oferece outra, “Cura Planetária”.
Emocionante, mas disfarço, deito, ela apaga a luz. Passam uns minutos e ela me diz:
- Bom né? Mas agora acabou, você pode ir. Você poderia pendurar o tapete ali por favor?
(Eu adoro o jeito que ela encerra a coisa, neutra, educada, desapegada, sem espaço pra divagações. Obedeço, agradeço.)
- Sim Maria. Obrigada pela aula. Dá um beijo na sua mãe.
- Obrigada também. Como é mesmo seu nome? Você tem o mesmo cheiro da Dedé, aquela outra que teve bebê.
- E você é uma ótima farejadora mocinha.
Minha lista estava cumprida, e naquele dia, ao invés da disciplina escolhi a entrega. Todo resto veio de brinde.
(Ilustração do Respire Blog, via Kika Teixeira)
Texto originalmente publicado na coluna Ex pressão do Página3 impresso, em 18 de outubro de 2014
É curiosa e encantada com manifestações da natureza, incluindo a humana. Tem resistência a currículos e títulos. Tenta exercitar a entrega cotidiana. Discorda da própria opinião. É apaixonada. Não sabe, nem quer, separar nada de coisa alguma.
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Tava na cidade, toda atrapalhada, toda em dúvidas. Nitidamente um sintoma da síndrome da roça, umas quinze opções de não-sei-se-faço e a predominante vontade de voltar pra casa e assar um pão antes do dia se ir.
O lado caxias querendo cumprir o que se propôs, que até agora se resumiu a visitar a amiga…pra que mercado, pra que banco, pra que lista de itens… Isso tudo só embaralhando mais a cabeça. Vamos praticar, esse era o topo da lista. Disciplina, disciplina Caroline… mas... será mesmo que é o que preciso hoje? Tô com fome. Tô fora de casa há horas. Quero sair da cidade. E o bebê? Vamos praticar, decisão tomada pela segunda vez. Tem o trânsito, tem entrar na rua errada, tem mais confusão.
Atrasada uns vinte minutos, rondei a porta, cogitei, desisti quando escutei todo o silêncio e a concentração de um grupo que saiu de casa pra isso. Tá tudo certo, cestlavie, plantio e colheita, você nem sabia se ia casar ou andar de bicicleta, toma uma água, senta um pouco, volta a si e vai embora.
Lá estou dando o tempo quando vejo Maria, no auge de sua meia dúzia de anos, toda trabalhada na sapequice, me dando aquela analisada onde tava escrito “e aí perdida?” (eu rio)
- Maria! Você tá aí é? Quanto tempo menina! (tentando evitar o bordão “você cresceu” com o apertão nas bochechas, mas consciente que sim, a gente fica igual às tias).
- Oi. Mas quem é você mesmo?
(Por um instante lamento a ausência e queria fazer mais parte; no instante seguinte comemoro e vejo que faço totalmente parte. Quem quer que ela me reconheça é meu ego, mas meu coração tá aqui, em total presença com ela e com sua verdade, o que é mais lindo. Quanto tempo tem num instante?)
- Eu sou aquela tia que tem vários filhos, uma é bebê, você se lembra? Eu sou amiga da mamãe, que te conhece desde que você tava dentro da barriga.
- Ãããhn tá. (vulgo “grandes coisa”).
Saiu andando.
Continuei o assunto corriqueiro de halls de entrada. Me cansei, dei uma volta, caí na sala de Maria, com uma casinha muito bem montada, um filtro dos sonhos gigante e um tapete azul esticado no chão. Deus, o yoga que eu precisava, toda a inocência e a pureza do mundo, um espaço vazio, menos gente, menos outros, e uma facilitadora mestra e despida de qualquer tem-que-ser.
- Ah, com licença Maria, eu posso ocupar esse espaço um pouquinho?
- Ah claro, você veio fazer yoga?
- Sim, eu vim.
- Ah, pode fazer sim. Você quer uma ajuda? Olha, faz essa postura aqui do macaco.
- Ah, ok, faço sim.
- Ahãm, você parece uma macaca MESMO. Agora faz essa aqui, da árvore. (...) E agora essa aqui, como é mesmo o nome? Ai, como é mesmo… (saiu da sala, deu uma volta)… A postura da mamãe! A mamãe adora essa postura, ela sempre faz, vamos chamar de postura da mamãe.
- Hm, eu também gosto dessa, eu gosto muito (comemorando internamente a perfeita definição para natarajásana, a postura de Shiva como dançarino cósmico - dança, equilíbrio, quatro braços, tudo a ver com mamães!).
E ela continuou guiando: - Vamos fazer juntas… Coloca a mão aqui ó, isso, muito bem, você também sabe essa. Vamos mostrar pra mamãe quando ela sair da sala.
Já estou totalmente satisfeita e agradecida pelo atraso, pelas dúvidas e por voltar a mim dessa forma, mas ela ainda tem mais a oferecer:
- Vamos tirar uma cartinha. (não era uma pergunta, era uma afirmação). Ela embaralha o tarô, retira uma pra si, ABUNDÂNCIA, e me oferece outra, “Cura Planetária”.
Emocionante, mas disfarço, deito, ela apaga a luz. Passam uns minutos e ela me diz:
- Bom né? Mas agora acabou, você pode ir. Você poderia pendurar o tapete ali por favor?
(Eu adoro o jeito que ela encerra a coisa, neutra, educada, desapegada, sem espaço pra divagações. Obedeço, agradeço.)
- Sim Maria. Obrigada pela aula. Dá um beijo na sua mãe.
- Obrigada também. Como é mesmo seu nome? Você tem o mesmo cheiro da Dedé, aquela outra que teve bebê.
- E você é uma ótima farejadora mocinha.
Minha lista estava cumprida, e naquele dia, ao invés da disciplina escolhi a entrega. Todo resto veio de brinde.
(Ilustração do Respire Blog, via Kika Teixeira)
Texto originalmente publicado na coluna Ex pressão do Página3 impresso, em 18 de outubro de 2014
É curiosa e encantada com manifestações da natureza, incluindo a humana. Tem resistência a currículos e títulos. Tenta exercitar a entrega cotidiana. Discorda da própria opinião. É apaixonada. Não sabe, nem quer, separar nada de coisa alguma.